Lembranças de um amor

 

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Prólogo

 

 

Quando sentires a saudade retroar
Fecha os teus olhos e verás o meu sorriso.
E ternamente te direi a sussurrar:
O nosso amor a cada instante está mais vivo!
Quem sabe ainda vibrará em teus ouvidos
Uma voz macia a recitar muitos poemas…
E a te expressar que este amor em nós ungindo
Suportará toda distância sem problemas…

Quiçá, teus lábios sentirão um beijo leve
Como uma pluma a flutuar por sobre a neve,
Como uma gota de orvalho indo ao chão.

Lembrar-te-ás toda ternura que expressamos,
Sempre que juntos, a emoção que partilhamos…
Nem a distância apaga a chama da paixão.

(Soneto da Saudade – Guimarães Rosa)

 

 

Prólogo

 

Dezesseis anos atrás...

 

Um vento gelado, típico de outono, balançava os galhos das árvores, provocando a queda de folhas secas pelo gramado que se estendia por vários metros. Poucas pessoas desfrutavam do parque àquela hora, quase seis da tarde, enquanto um casal de namorados se abrigava sob um carvalho.

Patrícia estava sentada no meio das pernas de Gabriel, com a cabeça encostada no peito dele.

– Eu te amo tanto, Gabe! – a garota declarou, com o olhar sonhador.

– Gabe? – O rapaz arqueou uma sobrancelha.

– É que eu acabei de ler um romance no qual o mocinho se chamava Gabriel e o apelido dele era Gabe. Eu sei que “Gueibe” é um apelido estrangeiro, mas...

– E esse mocinho ganhou seu coração pelo jeito... – ele a cortou e torceu os lábios, fingindo aborrecimento.

A risada de Patrícia reverberou através do parque, pelo que foi recompensada com uma sessão de beijos em todo o rosto.

– Só existe espaço para um Gabe no meu coração, seu bobo. – Depositou um beijo no queixo dele.

– Assim espero, Patty – ele pronunciou o apelido em inglês, “Péri”, e ambos caíram na risada. Então, um silêncio confortável se instalou entre eles e foi quebrado apenas por palavras ditas numa voz rouca: – Eu também te amo muito, minha princesa.

No mesmo instante, com o coração batendo apressado, Patrícia fechou os olhos e fez um pedido em silêncio: “Por favor, Deus, permita que o Gabriel me ame para sempre.”

Um nó inesperado apertou a garganta da garota. E um medo inexplicável encheu seus olhos de lágrimas. Mas ela as reteve quando os lábios do rapaz pousaram sobre os seus. Beijá-lo era tão bom, tão certo. As bocas sempre se encaixavam de um modo tão perfeito que fazia Patrícia desejar que o beijo não terminasse nunca. E Gabriel parecia ter o mesmo desejo, pois ele costumava apertá-la contra si com força, intensificando mais e mais o balé das línguas antes de soltá-la e aceitar o fim do contato, vários minutos depois.

Cada beijo, abraço, conversa, olhar que Gabriel lhe dava eram pequenas bênçãos que ela recebia. O namoro deles era tudo com que uma garota romântica como ela sonhou. E ele a amava tanto quanto ela o amava! Com certeza, não havia o que temer.

Sorriu, encostando a testa na do namorado.

Eles estavam juntos há dois anos; começaram a namorar um mês após ela completar 15 anos e ele, 16 – faziam aniversário quase no mesmo dia! Mas tiveram que enfrentar uma barra, porque os pais dela, superprotetores que eram, a princípio, proibiram o relacionamento por achá-la nova demais. Entretanto, haviam vencido todas as barreiras juntos, sem nunca brigarem.

– Estava aqui pensando... – Gabriel falou, sorridente, interrompendo os pensamentos de Patrícia. Ele colocou-lhe uma mecha de cabelos castanho-escuros atrás da orelha. – Na semana que vem eu vou começar a servir o exército.

À menção daquele assunto, Patrícia murchou instantaneamente. Suspirou. Desviou os olhos dos dele.

- Não, amor, não fique assim. – Ele segurou o queixo dela com delicadeza. – Já conversamos sobre isso. E eu garanti que nada vai mudar entre nós.

- Mas você vai ficar longe durante toda a semana... – Ela fez um biquinho, e ele aproveitou para lhe morder o lábio inferior.

- Mas estarei pensando em você todas as horas do meu dia. – Os dois sorriram, os olhares presos um no outro. – E é por isso que quero que a gente faça um juramento.

- Um juramento? – Patrícia franziu a testa.

- Vamos jurar que a distância só vai fortalecer ainda mais o nosso amor. E continuaremos fazendo como sempre fizemos: qualquer problema que a gente tiver, vamos resolver juntos. Você me dá sua palavra? – Ele abriu o sorriso escancarado, que Patrícia tanto amava e que fazia seus dentes branquinhos criarem um contraste lindo com sua pele morena. – Ou talvez pudéssemos fazer um juramento de sangue.

- Ai, não, Biel, nada de sangue. Tenho pavor de sangue, você sabe. – Ela tremeu por inteira nos braços do namorado, arrancando-lhe uma gargalhada. – Eu juro! Vou te amar ainda mais enquanto você estiver longe e se minha vida começar a desmoronar, eu corro chamar o meu supernamorado.

- O seu supernamorado militar, não se esqueça disso. – Ele levantou uma sobrancelha, convencido.

Patrícia rolou os olhos, mas riu, enquanto Gabriel a pressionava contra o peito, num abraço apertado. O medo ameaçou voltar, trazendo a vontade de chorar. Porém, ela mordeu o lábio inferior até a sensação ruim passar. Estava no lugar que mais amava no mundo: nos braços de Gabriel. E depois daquele juramento nada os separaria, porque, de uma forma ou de outra, estariam unidos e um levaria o outro dentro de si para qualquer lugar que fossem. 

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Capítulo 1

Se Patrícia pudesse escolher um momento para que um super-herói a ajudasse, seria aquele. É claro: contando que eles existissem. O problema é que ela havia desistido de acreditar em heróis salvando mocinhas em apuros fazia mais de uma década.

Não teria a ajuda de ninguém naquele caso. E nem mesmo poderia contar com o hábito de roer as unhas, pois tinha prometido para a amiga Beatriz que o largaria. E era uma mulher de palavra. Principalmente quando a amiga que a fez prometer estava bem ao seu lado... soltando um palavrão atrás do outro.

— Caralho, eu não acredito que esse filho da puta fez isso com a gente!

— Se você não acredita, imagina eu que tenho uma montanha de dívidas e dependo do "filho da puta" em questão para pagá-las. — Franziu as sobrancelhas, sentindo-se estranha por falar palavrão. Talvez porque aquilo fosse expressamente proibido dentro de sua casa... proibido por ela mesma.

No entanto, não estava em sua casa. Estava era na frente da loja de cosméticos, na qual trabalhou nos últimos oito anos, junto com outras seis funcionárias, encarando as portas fechadas e o fato de seu Gomes ter sumido com as mercadorias e o dinheiro da rescisão que devia a todas elas.

— O cara falou que tinha decretado falência, mas que receberíamos o nosso dinheiro, nem que fosse parcelado! — Beatriz bufava, com as mãos na cintura e os olhos verdes prestes a soltar fogo.

— Eu me lembro, Bia. Eu estava junto com você quando ele falou isso...

O que mais ela poderia dizer? Que tinha acreditado no velho careca que choramingou o mês inteiro por não ter dinheiro suficiente para pagar o último salário de todas, mas que jurou dar um jeito de lhes pagar todos os direitos trabalhistas antes de fechar as portas da loja?

— Por que até hoje, com 33 anos, eu não fiz do hobby de artesã minha profissão?! — Patrícia desabafou, sem querer.

— Porque você é uma puta de uma medrosa que foge de tudo que te tira de sua rotina segura, incluindo nessa lista os homens!

Patrícia arregalou os olhos, mas não comentou nada. Contra fatos, não havia argumentos.

— Falando sério agora, Bia: santo Deus, o que eu vou fazer? Aquele agiota vai me matar! Ele já não ficou feliz porque atrasei o pagamento mês passado... Imagine quando souber que não vou ter dinheiro para pagar este mês?!

Olhou para as mãos, que tremiam. Levantou a cabeça e viu o olhar compadecido da amiga. Sua vida nunca foi fácil. Mas, naquele momento, Patrícia sentia como se estivesse carregando o peso do mundo nas costas.

— Ah, Paty, eu não consigo acreditar que seu próprio pai te colocou nessa roubada! Que espécie de pai faz isso com a filha?

— Um pai que nunca soube administrar o dinheiro e sempre foi viciado em jogos — ela suspirou, colocando os cabelos, levemente ondulados, atrás das orelhas.

Seu Ângelo lhe deu uma excelente educação, incutindo-lhe valores elevados: honestidade, altruísmo e respeito ao próximo. Porém, quando cabia a ele exercitar tais valores, o buraco era mais embaixo. Na verdade, o buraco não tinha fim, já que o pai repetia os mesmos erros desde que Patrícia atendia por seu nome.

— Eu ainda acho que você deveria pedir ajuda para a família do pa...

— Nem termina! — Patrícia cortou a mulher, o coração aos saltos. Por que sua amiga geniosa insistia tanto nesse maldito assunto? — Já te disse um milhão de vezes que jamais permitiria que eles arcassem com dívidas minhas ou do meu pai, Beatriz. Dona Elaine e seu Jonas não me devem nada.

— Lá vem você e seu orgulho idiota! – Beatriz prendeu os cabelos loiros num rabo de cavalo. — Os caras são cheios da grana por causa do boom do setor imobiliário, você mesma vive dizendo.

— Mas eu não sou igual ao meu pai, que não se importa de pegar dinheiro emprestado a torto e a direito. – Patrícia bateu o pé no chão. – Vamos mudar de assunto, por favor?

Beatriz não falou por quase um minuto todo, enquanto as outras meninas que trabalhavam (ou melhor, trabalharam) na loja iam embora transtornadas; algumas xingando, outras de cabeça baixa. Quando Patrícia a conhecera, assim que foi admitida por seu Gomes, Bia era apenas cliente da Beauty Cosméticos. Apesar das personalidades radicalmente diferentes, as duas se deram bem desde o primeiro instante. E tão logo surgiu uma vaga de vendedora, Patrícia não pensou duas vezes: pediu o currículo da amiga, entregou a seu Gomes e disse ao chefe que a contratação de Beatriz seria uma ótima estratégia, já que a moça estava concluindo um curso de maquiagem. O que nenhuma das duas suspeitou, entretanto, é que o final daquela união profissional aconteceria de forma tão trágica...

— Parece que só nos resta gastar até o último centavo com um bom advogado e irmos para a fila dos desempregados no auge da crise neste país... – Beatriz disse, de repente. – E, como desgraça pouca é bobagem, isso acontece justamente após eu ter enfrentado a merda de um divórcio litigioso!

— Eu sei, amiga... – Patrícia fez um carinho no braço de Beatriz. – Mas seu ex-marido acabou por aceitar o fim do relacionamento. Além disso, a senhorita está apaixonada por outra pessoa. – Deu uma piscadela.

A loira riu, e Patrícia se esforçou para não pensar no quanto Beatriz era sortuda por estar no peso ideal e ter os cabelos lisos e brilhantes. Enquanto ela... E as duas só tinham dois anos de diferença.

— O Guto é um gostoso, mas não estou apaixonada por ele. Estamos apenas curtindo e nos conhecendo.

— Pense pelo lado bom: você foi casada por seis anos e está “curtindo um homem gostoso”. Já eu não tenho um relacionamento de verdade há mais de quinze anos e perdi as contas da última vez que... fiz sexo – sussurrou a última parte. — Para falar a verdade, eu sei perfeitamente quando foi. Faz quatro anos, um pouco antes de descobrir que o cara era casado.

— E o Maurício? Você continua fugindo dele mesmo, né? O coroa está afinzão de você, mulher! – Beatriz deu um tapinha no ombro de Patrícia.

— Mas eu não sei se estou a fim dele... – Mordeu o lábio inferior e mudou de assunto, para um mais seguro. – Bem, eu acho que vou pra casa... Depois eu te ligo para combinarmos o próximo passo contra o “careca filho da puta”.

As duas trocaram um olhar desanimado e se despediram. Poucos minutos depois, Patrícia pegou o ônibus em Pinheiros que a levaria até o apartamento onde morava ao lado da rodovia Raposo Tavares.

 

***

Patrícia abriu a porta do apartamento de setenta metros quadrados – onde vivia desde a infância – e deparou-se com o pai esparramado no sofá, hipnotizado por algo que passava na televisão. Assim que percebeu sua presença, ele sentou-se ereto, arrumando a camisa toda amarrotada – que ela perdera vários minutos passando para ver se o idoso adquiria um ar mais responsável e asseado.

— Já em casa, filha! O seu Gomes acertou tudo com você?

— O salafrário fugiu sem pagar nenhum funcionário, pai. – A moça pendurou a chave atrás da porta e correu os olhos pela sala. Encontrou migalhas de pão por todo o sofá; um copo de leite vazio sobre a estante; as almofadas esparramadas no tapete, que tinha uma mancha nova.

Teve vontade de voltar para o ponto, onde acabara de descer, e, se possível, pegar um ônibus que a levasse para o outro lado do mundo. Mal prestou atenção à indignação de seu pai, que voltou a se deitar no sofá.

— Como ele fugiu?! Esse safado não pode deixar de pagar seus oito anos de firma! É muito dinheiro! Isso não vai ficar assim! Vamos atrás de um advogado imediatamente, Patrícia. E eu conheço um dos bons, o Silvio Abrantes. Você sabe quem é. Ele nos ajudou com o enterro da sua mãe e...

— Depois a gente vê isso, pai. Estou morrendo de dor de cabeça. Vou tomar uma aspirina e me deitar um pouquinho... – hesitou à porta da cozinha. E foi invadida por uma sensação de leveza ao pensar na pessoa mais especial de sua vida. – O meu anjinho já chegou?

— Ainda não. Hoje ela tem natação.

— É verdade... eu havia me esquecido. Quando ela chegar, eu preparo o almoço.

Entrou na cozinha e, tão logo tomou a aspirina, ouviu o pai falar, num tom envergonhado:

— Filha, eu não estendi as roupas que você deixou dentro da máquina... desculpe... É que eu estava assistindo um programa interessante...

Qual era a novidade? Ele jogava todos os afazeres nas costas dela, de qualquer jeito. E sempre com a mesma justificativa: um programa, um filme, um seriado imperdíveis. E ela não se importava, porque, afinal, seu Ângelo já tinha 66 anos e era seu pai.

— Tudo bem, pai. Eu estendo mais tarde. – No final das contas, aquilo era melhor do que ele estar na rua, fazendo novas dívidas.

Patrícia entrou em seu quarto e fechou a porta atrás de si. Jogou os sapatos, sem o mínimo remorso, para longe. Pegou o celular dentro da bolsa. E se deitou na cama, de bruços. Antes de fechar os olhos, contudo, acessou sua playlist e selecionou uma das faixas. Gostava de ouvir música quando estava se sentindo deprimida. E sempre optava pela mesma cantora: Laura Pausini. Era fanática por ela desde menina. A italiana a acalmava. Traduzia seus sentimentos. E a fazia sonhar de novo. Provavelmente porque as músicas de Laura a lembravam da época mais maravilhosa de sua vida: a adolescência.

Só não entendia por que havia escolhido justamente aquela faixa, que lhe trazia tantas lembranças dolorosas: En Ausencia De Ti.

Assim que ouviu os primeiros acordes da canção, as lágrimas surgiram, sem aviso. E Patrícia traduziu, contra sua vontade, automaticamente, cada palavra, que sabia de cor e salteado:

Estou nua como uma árvore sem você

Minhas raízes se secaram

Abandonada assim

Eu preciso que você esteja aqui

 

Não existe uma coisa que não te traga a mim

Nesta casa, nesta escuridão

A neve cai e será mais triste o inverno

Quando o Natal chegar

 

E eu sinto a sua falta, meu amor

É como se eu buscasse Deus e encontrasse um vazio

Na sua ausência, eu queria lhe dizer:

“Sinto saudade de você, meu amor”.

A dor é forte, como um desafio

Na sua ausência, eu não sei como sobreviver.”

 

O choro pulou de dentro de sua alma, espalhou-se por toda ela e voou através do quarto. Patrícia se entregou a ele. Soluçando, sem culpa, sem medo. Precisava colocar para fora aquela dor que ela obrigava, dia após dia, a permanecer trancada no baú de suas memórias. Sabia que não chorava mais por causa do patrão salafrário. Muito menos, pelo pai que sugava até a última gota de seu sangue.

Ela chorava por ele.

Quinze anos depois e ela ainda se desmanchava em lágrimas pelo homem que não cumpriu o juramento feito sob um carvalho, num dos dias mais doces de sua vida.

Gabriel...

Sua mente continuava chamando por ele... Não, ela inteira ansiava por sua presença, seu toque... seu amor.

Ainda sentia sua falta. Muito! Como era possível sentir falta de alguém que desaparecera de sua vida há mais de uma década – a mesma pessoa que quebrou seu coração em tantos pedaços que ela ainda não fora capaz de recuperá-lo completamente.

No entanto, Gabriel estava ainda impregnado em sua cabeça, em sua alma. Fechava os olhos e conseguia ver o moreno altíssimo, do sorriso largo e olhos escuros. Pior: de uma forma inexplicável, ela podia sentir seus beijos, nunca conseguira esquecer o gosto mentolado de sua boca. Ou o jeito com que as mãos dele corriam por seu corpo; conhecendo todas as partes mais sensíveis. Havia também as palavras doces que ele costumava lhe falar... Tantas declarações de amor ao pé do ouvido. E os abraços... daqueles bem apertados, que ela nunca ganhou de outra pessoa.

Nenhum homem entrou em seu coração como seu Gabe. Nenhum a fez se sentir a mulher mais linda e especial do mundo. Nunca foi capaz de amar outro como o amara...

Subitamente, ouviu vozes na sala. Sobressaltou-se. Secou as lágrimas com gestos ágeis. E um sorriso surgiu, tão repentino quanto o choro. Seu anjinho estava em casa. O presente abençoado que Gabriel lhe deixou antes de partir.

Uma voz doce atravessou a porta do quarto:

— Mãe, cheguei!

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Capítulo 2

Os filhos se parecem com o pai; e as filhas, com a mãe. Essa deveria ser a lei natural das coisas.

Patrícia pensava sobre isso enquanto contemplava a adolescente alta, magra, de longos cabelos lisos pretos e olhos escuros. Era uma cópia tão fiel de Gabriel que não fossem os seios despontando e os lábios delicados – a única característica física que herdara dela – a moça acreditaria estar em frente a seu ex-namorado quando ele tinha 14 anos.

Estava exagerando, é claro. Michele jamais se passaria por homem. Era uma garota muito feminina. Andava com roupas cheias de estilo – a maioria modificada pela própria filha, que sonhava ser estilista um dia –, tinha a voz doce e costumava falar pelos cotovelos, como fazia naquele momento.

— Nossa, mãe, que cara de morte! Você andou chorando? O vô Ângelo falou que o seu Gomes fugiu com o seu dinheiro. Aquele homem imbecil! Agora a crise no Brasil é desculpa pra tudo... Vou colocar um vídeo no meu canal contando o que ele fez com você e meus seguidores vão me ajudar a divulgar até encontrá-lo. Eu te contei que cheguei a cinco mil seguidores? Ai, mãe, estou tão feliz e...

— Por favor, Michele, pare de falar um pouquinho e respire. Estou ficando tonta. – Patrícia não pôde resistir e sorriu. — Você não está gravando um desses seus benditos vídeos.

— Ai, mãe, às vezes você é tão chata... – Michele curvou o lábio inferior e se jogou na cama, da qual Patrícia havia levantado quando a filha bateu na porta do quarto.

— Isso é ótimo, dona Michele. Sinal de que estou te educando bem. Dizem que quando a mãe é chata, os filhos são bem-criados.

Michele soltou um “humf” e, por um imenso milagre, ficou em silêncio, consultando o celular, que tirou do bolso da saia. Na verdade, não era milagre nenhum. Patrícia sabia que a filha era viciada naquele aparelho... como todo adolescente de norte a sul do planeta.

Aquela pausa na “falação” fez com que Patrícia retomasse o clima de nostalgia que tinha se abatido sobre ela havia pouco. Nunca imaginou que seria mãe na adolescência. Ela e Gabriel tinham planos de se casarem aos 23 anos – quando ele terminasse a faculdade de Biologia, que sonhava em cursar; e ela já tivesse montado uma loja, com os trabalhos artesanais que produzia desde o final da infância.

A gravidez caiu como um míssil teleguiado na vida deles. Ela, a filha única muito mais imatura do que as adolescentes de sua idade por ter sofrido com a superproteção de pais mais velhos. Ele, o xodó da família por ser o caçula de gênio dócil.

Ninguém ficou feliz com a notícia.

Ninguém os obrigou a se casarem, como seria de se esperar, visto que vinham de famílias conservadoras.

Foi bem o contrário.

Seus pais escorraçaram Gabriel de sua casa quando souberam da gravidez. Houve socos, gritos e lágrimas.

Os pais dele o defenderam até a morte. Mais brigas, choro e a angústia que durou toda a gestação.

E como foi difícil a gestação de Michele!

Patrícia sofreu tanto com vômitos. Emagreceu muito antes de engordar. Mas nunca engordou a quantidade recomendada pelo obstetra. Teve depressão e foi obrigada a aguentar, durante nove meses, sua mãe – que tivera personalidade dominadora e inflexível – a envenenando contra Gabriel e tratando o rapaz como um rato de esgoto.   

No entanto, o que levou o pai de sua filha para longe, o fazendo se decidir por seguir carreira no exército, não foi nada disso. Ou talvez tenha sido tudo isso, somado, culminando no evento que se tornaria o mais triste de sua vida. Algo que os separou para sempre e pelo que ela jamais pôde perdoar Gabriel Souto. Mas ele tampouco demonstrou querer o seu perdão... Estava muito ocupado a odiando a quilômetros dali, enquanto a mãe dele, dona Elaine – que surpreendentemente provou ser uma compreensiva e carinhosa avó – interpretava pelos últimos quase 15 anos o papel de intermediária entre ele e Patrícia na criação de Michele.

— Tenho novidades!

Patrícia deu um pulo quando o grito estridente de Michele invadiu seus pensamentos. Levou a mão ao peito.

— Qualquer dia você ainda vai me matar do coração com esses seus rompantes, Michele!

— Desculpa, mãe, mas escuta...Eu quase me esqueço de te contar! Também é tanta coisa na minha cabeça... Ainda não gravei o vídeo de amanhã pro canal, meu aniversário está chegando e...

—Foco, Michele Camargo dos Santos Souto! – Patrícia exclamou, dando a primeira risada desde que chegou em casa.

Michele se mostrou visivelmente sem graça; algo tão raro de acontecer que provocou outra risada na mãe, que se sentou ao lado da filha e começou a fazer carinho em seus cabelos.

— Quais são as novidades, meu anjinho? – Patrícia tornou a falar.

— Conversei com a vó Elaine na escola pelo WhatsApp e...

— O que eu disse sobre não usar esse aplicativo durante a aula, dona Michele? – A moça a interrompeu — Eu falei que da próxima vez eu ia tomar o seu celular!

— Ah, mãe, foi só na hora do intervalo... eu juro. – A menina novamente entortou o lábio inferior, em seu tique costumeiro. — Então... a minha avó falou que a costureira já refez meu vestido pra minha festa! E que ele está lindo... Se bem que não dá muito pra acreditar na vó Elaine, porque ela tem um gosto duvidoso... Mas se a costureira seguiu tudo que eu pedi, deve estar lindo mesmo porque, você sabe, eu pedi pra ela tirar aquela saia brega e...

Michele prosseguiu descrevendo o vestido – teria menos babado, nada de saia rodada, para não parecer a abóbora da Cinderela, e nada de alças rosa bebê, pois, segundo ela, aquela cor tinha saído de moda na década de 2000 (como se dona Michele fosse adolescente desde aquela época...). Patrícia não conseguia parar de sorrir enquanto assistia à filha falar tão animadamente sobre seu baile de debutante, que aconteceria no final do mês. Não estava animada apenas por ver a menina radiante em sua frente, mais expansiva do que de costume. Ou porque ela era saudável, alegre e sua melhor amiga. Estava feliz (e muito grata!) também pela existência da avó de Michele. Dona Elaine era uma verdadeira bênção para elas.

Era certo que ela mimava bastante a neta – da mesma forma que fez com Gabriel quando criança, Patrícia não tinha dúvida disso. Mas, graças a ela, Michele realizava tantos sonhos e... tinha um bom relacionamento com o pai.

Quando ela e Gabriel terminaram da pior forma possível, Patrícia imaginou que o rapaz, se muito, registraria a filha antes de sumir no mundo. Mas ele fez questão de assumir seus deveres como pai – ainda que tenha deixado bem claro que não queria mais nenhum tipo de contato com a ex-namorada. Naquela época, depois do sofrimento que ele lhe causou, a última coisa que Patrícia queria era ver a cara de Gabriel. Então, influenciada pela mãe, dona Madalena, concordou sem pestanejar.

Nos finais de semana que dona Elaine aparecia para levar Michele à sua casa, Patrícia sabia imediatamente que Gabriel estava de folga do serviço militar, em visita à filha, mesmo antes de Michele aprender a falar ou dona Elaine lhe confessar mais tarde.

Assim que Gabriel se mudou definitivamente para Santa Catarina, quando a filha completou um ano, dona Elaine lhe pediu que o antagonismo entre Patrícia e Gabriel não prejudicasse Michele e que a moça lhe deixasse levar, em todas as férias escolares, a neta até a pousada a qual o filho passou a administrar.

Foi difícil e, ao mesmo tempo, fácil largar essa responsabilidade nas mãos da ex-sogra. Dona Elaine dava os recados de Gabriel para Patrícia; ela mandava recomendações para o ex-namorado através de dona Elaine. Se a senhora se sentia incomodada com isso, nunca demonstrou. O bem-estar de Michele sempre esteve acima de tudo. Os anos se passaram. E era como se Gabriel tivesse desaparecido de sua vida, apesar de se manter presente daquela forma estranha. E, na verdade, ele desaparecera mesmo, já que, em todos aqueles anos, sempre fugiu do contato com ela. A comunicação entre pai e filha, em geral, era feita por celular e, de preferência, quando Michele estava na casa da avó materna. E, quando a filha demonstrou interesse em unir mãe e pai, Gabriel passou um mês sem ligar para a menina.

Como se o mais machucado nessa história tivesse sido ele...

— Mãe, você está me ouvindo? Você fica olhando pro nada... Parece apoplética... eu, hein!

Michele se pôs a estalar os dedos na frente do rosto de Patrícia.

— Tô ficando velha, dona Michele. Não tenho mais a mesma energia que você. — A moça se levantou da cama, sacudindo a cabeça. “Chega de remoer o passado, dona Patrícia”, ordenou a si mesma. — É melhor eu preparar o almoço. Você e seu avô devem estar morrendo de fome.

— Pior que tô mesmo. – Michele deu uma risadinha. – Mas ainda não contei a maior novidade de todas!

Patrícia parou no meio do quarto, com as mãos na cintura, disfarçando um sorriso.

— Seu número de seguidores no YouTube aumentou de novo?

— Não, mãe! Isso eu já contei pra você. – Michele levantou-se da cama num pulo e jogou os cabelos para trás. —Você não vai acreditar! Vó Elaine me contou que meu pai vai vir pra minha festa! Ele não vem pra São Paulo desde que eu era bebê, a vó Elaine disse. Eu não me lembro, é claro, e...Foi uma surpresa total! Ele nem falou nada no mês passado, quando fui na pousada... Aí, eu mandei uma mensagem pra ele depois da aula, perguntando se era verdade, e ele acabou de responder... Ficou meio bravo, porque era surpresa e a vovó contou... mas ele disse que vai vir sim...

Patrícia nunca desmaiou na vida, mas confessava que tinha curiosidade para saber qual era a sensação de ter um desmaio. E parecia que seu desejo seria atendido, pois, subitamente, o mundo começou a se apagar à sua frente.

Gabriel na festa de 15 anos da filha.

Gabriel no mesmo lugar que ela (Dessa vez ela não podia inventar uma desculpa para não participar de uma comemoração na casa dos sogros. Era o evento mais importante da vida de sua filha!)

Gabriel e ela, frente a frente.

Santo Deus, o que aconteceu pra aquele homem aceitar, finalmente, sair da “caverna” onde se meteu na última década?

— Mãe, o que foi? Você está bem? – Michele amparou Patrícia quando ela começou a cair para frente.

Patrícia se apoiou na filha, sentindo a garganta seca.

— São muitas notícias ao mesmo tempo. Mas estou feliz por você, filha. Você sempre sonhou que seu pai viesse numa festa sua de aniversário.

— Sim! – entusiasmou-se. – E eu já estou com saudade dele! Pensei que a gente só fosse se encontrar de novo no feriado da Páscoa, quando eu ia pra lá. – Encarou Patrícia. – Mas tá tudo bem mesmo, mãe? Eu sei que... vocês não se conversam... Ele nem gosta que eu fale de você...

De seca, a garganta de Patrícia virou uma cachoeira pelas lágrimas que a inundaram de repente. A revelação ingênua de Michele a pegara desprevenida. Mas não queria demonstrar abalo e, com isso, entristecer a filha naquele momento tão especial de sua vida. Além disso, a menina idolatrava o pai. E Patrícia tinha que admitir: mesmo à distância, ele era um bom pai.

— Está tudo bem, meu anjinho, de verdade. – Abraçou Michele. – Eu e seu pai somos adultos. Saberemos lidar com esse reencontro.

E que Deus a ajudasse que aquilo fosse verdade!

— Ai que alívio! – Michele retribuiu o abraço e deu um beijo no rosto da mãe. – Bem, mas agora eu vou pro meu quarto porque preciso ligar pra Dani antes de almoçar.

— Você não acabou de estar com ela?!

— Ela. Não. Faz. Aula. De. Natação. Mãe. – Michele falou pausadamente, como se precisasse de toda paciência possível para fazer a mãe compreendê-la.

Patrícia revirou os olhos.

— É que preciso saber como foi o encontro com o crush dela – Michele declarou.

— E que raio é isso, Michele? Um jogo da internet?

A menina caiu na risada.

— Ai, mãe, você é igualzinha ao meu pai... – E ela saiu do quarto.

É... ela deveria mesmo ser idêntica a Gabriel... Dois campeões na arte da fuga. Mas Patrícia acreditava que na arte do desespero só dava ela...

Ahhhhhhhh!

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Capítulo 3

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Capítulo 4

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Capítulo 5

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Capítulo 6

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Capítulo 7

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Capítulo 8

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Capítulo 9

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Capítulo 10

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Capítulo 11

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Capítulo 12

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Capítulo 13

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Capítulo 14

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Capítulo 15

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Capítulo 16

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Capítulo 17

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Capítulo 18

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Capítulo 19

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